Fevereiro 2020
Apesar do período de férias, os últimos dois meses foram marcados por eventos significativos para o compliance no Brasil.
Começando pelas más notícias, houve a divulgação do Corruption Perception Index (CPI), tradicional estudo da Transparência Internacional, para identificar a percepção de corrupção no setor público de 180 países. Apesar de manter a mesma pontuação (35 pontos de 100 possíveis), o Brasil desceu uma posição em relação ao estudo do ano passado, ficando em 106º, pior posição.
Por outro lado, começam a ser reunidas condições para superar a tendência negativa: em 24 de dezembro de 2019, o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19), projeto de lei proposto pelo Ministro da Justiça, Sergio Moro, foi sancionado com regras de combate à corrupção e aos crimes corporativos mais incisivos.
O Pacote Anticrime endureceu aspectos do sistema criminal brasileiro, alterando dispositivos no Código Penal e no Código Processual Penal. Leis especiais também sofreram alterações, como a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98), a Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/19), entre outras.
Indiretamente, pontos do Pacote Anticrimes impactarão o cenário corporativo brasileiro, principalmente os relacionados ao compliance. O contexto e a motivação do Pacote Anticrime demonstram uma tendência de maior enforcement por parte das autoridades brasileiras contra crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, o que faz com que medidas de compliance se tornem ainda mais relevantes.
Ganha força a figura do whistleblower ou denunciante de boa-fé. Juntamente com alterações da lei sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias em investigações policiais (Lei nº 13.608/19), uma recompensa de até 5% sobre o valor recuperado poderá ser concedida quando as informações fornecidas às autoridades resultarem na recuperação de ativos provenientes de crimes contra a Administração Pública.
A novidade consiste em atrelar a recompensa ao valor que foi recuperado nos moldes do utilizado pela Securities and Exchange Commission (SEC), autoridade estadunidense que equivale à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Apesar da intenção de incentivar a participação da sociedade civil no combate a irregularidades, a lei pode ser genérica demais para ser aplicada de maneira efetiva.
O Pacote Anticrime estipula somente a possibilidade de recompensa, sem regulamentar seu procedimento. A legislação americana contém diversos dispositivos e requisitos para a concessão da recompensa, sendo altamente regulamentado. Possibilitar uma recompensa de forma tão genérica pode gerar insegurança jurídica num instituto pouco entendido e estudado no Brasil. Para lidar com essa omissão, é possível que haja um Decreto Regulamentador ou algum normativo do Ministério da Controladoria-Geral da União (CGU).
Outro aspecto relevante foi o fortalecimento dos acordos entre autoridades e investigados. O novo Acordo de Não-Persecução Criminal é o exemplo mais claro desta política. O novo instituto é aplicável a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à vítima e cuja pena mínima seja inferior a quatro anos de prisão. Logo, crimes como corrupção e lavagem de dinheiro são passíveis de serem resolvidos por meio do novo Acordo de Não-Persecução Criminal. Além disso, o indivíduo deve confessar a prática do delito – somente após cumprimento das condições do acordo, é decretada a extinção de punibilidade e o delito não é listado nos antecedentes criminais.
O Pacote Anticrime também alterou aspectos da Colaboração Premiada, definindo-a como meio de obtenção de prova e trazendo diversas mudanças que a tornaram mais segura e atrativa. As principais alterações foram:
- exigência de que os termos da colaboração sejam negociados na presença de um advogado;
- proibição do recebimento de denúncias e a decretação de medidas cautelares com fundamentos apenas nas declarações do colaborador; e
- obrigação de conceder publicidade aos termos da colaboração somente após o recebimento da denúncia.
Uma possível consequência deste cenário de maior cooperação com autoridades é o crescimento no número de acordos de leniência decorrentes das informações obtidas nestes procedimentos negociais, o que provocaria mais investigações internas nas empresas.
Por fim, o Pacote Anticrime trouxe a possibilidade de utilização da ação controlada e da infiltração de agentes no combate ao crime de lavagem de dinheiro. A medida demonstra uma clara intenção de perseguir e combater tal delito de forma mais incisiva, fazendo com que a implementação de uma boa política de prevenção à lavagem de dinheiro seja ainda mais importante. Talvez esta nova ferramenta seja usada primeiro em empresas: intuitivamente, este tipo de ação parece ser mais fácil em empresas do que em organizações criminosas propriamente ditas.
É cedo para definir se os impactos desta nova normativa serão positivos. A pressão por parte da sociedade e a preocupação das autoridades em conseguir reprimir crimes econômicos de modo efetivo fez com que uma legislação desenhada para o combate ao crime organizado fosse utilizada e trouxesse vários mecanismos com impacto direto sobre o cotidiano empresarial.
Neste contexto, é recomendável que as empresas busquem entender o impacto e se adaptar de modo adequado. Há trabalho de casa a ser feito: ao entender melhor os possíveis desdobramentos desta legislação, riscos poderão ser avaliados com maior rigor e programas de compliance elaborados com maior eficácia para cada empresa específica.